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domingo, 21 de novembro de 2010

"A Roubalheira" de Alice Vieira

Todas as pessoas têm sempre muitas teorias explicativas, sem margem para dúvidas, das causas que levam ao afastamento da leitura. A primeira, mas a primeira mesmo (aquela que é mesmo tão primeira, tão primeira, mas tão primeira que até chateia de ser tão primeira - como diriam os Gatos Fedorentos) é o preço dos livros. Aqui d’el rei que as criancinhas não lêem porque os livros custam uma fortuna. Fossem os livros mais baratitos e vocês iam ver como as crianças (e os adultos) não faziam outra coisa senão ler de manhã à noite.
Mas ao preço a que os livros estão...
Pois é. Toda a gente já ouviu este discurso, toda a gente já invocou, numa ocasião ou outra, esta desculpa. Esfarrapada.
Esfarrapadíssima.
Porque é evidente que é tudo uma questão de prioridades: será sempre caro tudo aquilo de que não sinto falta.
Há muita outra coisa, bem mais cara do que um livro, e de cujo preço ninguém se queixa. Nunca, em tempo algum, um pai (ou mãe) de família se chegou junto de mim protestando contra o preço, por exemplo, de uma consola, de um jogo de vídeo, de um iPod, de um telemóvel dos que tiram fotografias e fazem downloads de músicas e mais não sei quantas maravilhas. Isto já para não falar de coisas bem mais banais como, por exemplo, um par de ténis com rodinhas fluorescentes, um bilhete para o futebol ou para um concerto de qualquer banda. Para tudo isso que, nestes estranhos tempos, as crianças exigem, o dinheiro parece chegar sempre. O pior são os livros. Os livros é que estragam tudo. Uma chatice, os livros.
Foi isso, de certeza, o que pensou também aquele digníssimo pai de família que, nesta última Feira do Livro de Lisboa, diante do stande da Caminho, rapou de um papel que trazia no bolso e leu o título que lá escrevera.
«É para o meu filho», disse.
A empregada do stande foi buscar o livro e, tentando ser amável, apontou para mim e explicou ao senhor que eu era a autora do dito livro, coisa que não pareceu interessá-lo por aí além.
«Se quiser um autógrafo...», acrescentou a moça.
O homem olhou para mim, encolheu os ombros e lá me estendeu o livro, repetindo que era para o filho, que ele nem sabia que livro era aquele, ele dispensava leituras, mas o filho é que lhe tinha pedido, o filho é que até tinha escrito o nome no papel. E pronto, por isso é que ele ali estava. O que a gente não faz por um filho, caramba...
E enquanto eu me esforçava por escrever alguma coisa ligeiramente mais original do que o fatal «com um abraço», que diabo!, quem tinha um pai daqueles merecia um pouco mais de atenção - ele ia continuando a cantilena, e agora estávamos, evidentemente, no preço dos livros, que era uma roubalheira, uma pouca vergonha, como é que um livro tão pequeno como aquele tinha aquele preço, «Olhe, a lista telefónica é muito maior e é de borla!», e ria muito alto com a graça que estava a ter.
«Espero que ele goste», disse eu, entregando-lhe o livro quase a pedir desculpa de ter escrito um livro tão pequeno para a próxima havia de me esforçar por chegar aos calcanhares da lista.
Nova risada e novo encolher de ombros, «Se calhar nem gosta, ele também não vai muito à bola com os livros, mas que é que quer, a professora lá na escola é que mandou comprar, e você sabe como são agora os professores: mandam comprar toda a m... que aparece!»
No interior do stande há um silêncio a mascarar as gargalhadas que todos sufocamos com dificuldade, enquanto ele lá vai, alameda acima, resmungando contra a leitura, o preço dos livros, os professores, a roubalheira, a pouca vergonha.

Alice Vieira, Pezinhos de Coentrada, Casa das Letras, 2006

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