Neste dia e ainda, como forma de o assinalar, a Biblioteca convida à leitura
de um extrato de “ A Cidade e as Serras” de Eça de Queirós, patrono da escola.
Só o relógio monumental, que marcava a hora de todas
as capitais e o curso de todos os planetas, se compadeceu, batendo a
meia-noite, anunciando ao meu amigo que mais um Dia partira levando o seu peso
– diminuindo esse sombrio peso da Vida, sob que ele gemia, vergado. O Príncipe da Grã-Ventura,
então, decidiu recolher para a cama – com um livro... E durante um momento,
estacou no meio da Biblioteca, considerando os seus setenta mil volumes
estabelecidos com pompa e majestade como doutores num Concílio […].
Torcendo molemente o bigode caminhou pôr fim para a região dos Historiadores:
espreitou séculos, farejou raças; pareceu atraído pelo esplendor do Império
Bizantino; penetrou na Revolução Francesa de onde se arredou desencantado; e
palpou com mão indeliberada toda a vasta Grécia desde a criação de Atenas até à
aniquilação de Corinto. Mas bruscamente virou para a fila dos Poetas, que
reluziam em marroquins claros, mostrando, sobre a lombada, em ouro, nos títulos
fortes ou lânguidos, o interior das suas almas. Não lhe apeteceu nenhuma dessas
mil almas – e recuou, desconsolado, até aos Biólogos... Tão maciça e cerrada
era a estante de Biologia, que o meu pobre Jacinto estarreceu, como ante uma
cidadela inacessível! Rolou a escada – e, fugindo, trepou, até às alturas da
Astronomia: destacou astros, recolocou mundos; todo um Sistema Solar desabou em
fragor. Aturdido, desceu, começou a procurar por sobre as rimas as obras novas,
ainda brochadas, nas suas roupas leves de combate. Apanhava, folheava,
arremessava; para desentulhar um volume, demolia uma torre de doutrinas;
saltava pôr cima dos Problemas, pisava as Religiões; e relanceando uma linha,
esgravatando além num índice, todos interrogava, de todos se desinteressava,
rolando quase de rastos, nas grossas vagas de tomos que rolavam, sem se poder
deter, na ânsia de encontrar um Livro! Parou então no meio da imensa nave, de
cócoras, sem coragem, contemplando aqueles muros todos forrados, aquele chão
todo alastrado, os seus setenta mil volumes – e, sem lhe provar a substância, já
absolutamente saciado, abarrotado, nauseado pela opressão da sua abundância.
Findou por voltar ao montão de jornais amarrotados, ergueu melancolicamente um
velho Diário de Notícias, e com ele debaixo do braço subiu ao seu quarto, para
dormir, para esquecer.
Eça de
Queirós, A Cidade e as Serras
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